O
Presente
Esse
é o tipo de história que você precisa ler em um estado contemplativo. De forma
relaxada, respirando pausadamente e mantendo a mente consciente. Tudo isso por
que o que vou lhe contar não é nada muito extravagante. Mas, uma história
cadenciada que vai sendo bebida aos poucos, como uma boa sopa em uma noite
gelada.
Dizem
que o número três tem um significado de completude. Também dizem isso do número
sete, mas o três tem uma marca própria. Percebeu que somos corpo, alma e
espírito? Então, ai já tem três partes! Mas, tem mais: manhã, tarde e noite. E
o que dizer do passado, presente e futuro?!
Tudo
que termina em três completa um ciclo, e assim aconteceu com os três filhos de
Maria. Nicolau, Kevin e Túlio eram trigêmeos idênticos. Criados com o mesmo
estilo de roupa, a mesma rotina e a mesma disciplina. Eram crianças normais até
o ano passado, quando os pais deles morreram em um acidente de carro.
Eles
tinham apenas dezessete anos quando o trágico dia fatídico aconteceu. Era 31 de
dezembro e a família viajava para o interior do estado. Iriam passar a virada
do ano com os avós. Tudo ocorria bem, até que pararam em um posto na beira da
estrada, e enquanto os meninos correram até o banheiro, o casal aguardava-os no
carro.
Nicolau
foi o primeiro a sair do banheiro e presenciar o acidente. Um caminhão
desgovernado saiu da estrada, e invadiu o posto esmagando o carro em que seus
pais estavam. No mesmo instante, Nicolau caiu em prantos desmaiando em seguida.
Ele somente acordou um ano depois no dia 31 de dezembro. Pois durante todo esse
ano, ele ficou em estado de choque sem compreender o que havia ocorrido. Aquele
caminhão não esmagou somente seus pais, mas também o seu espírito.
Kevin
era o mais equilibrado. Ele tocou a vida, apesar da dor constante que lhe
tirava o fôlego. Seus mentores foram arrancados de forma brusca. Aqueles que
lhe proviam proteção foram massacrados por um caminhoneiro imprudente. Nada
seria como antes, Kevin sabia disso. Era um momento arriscado em que ele
deveria saltar. Ele precisava ir além, precisava ser corajoso, determinado e
firme. Alguém tinha que cuidar da casa e auxiliar seus irmãos, então ele
assumiu essa responsabilidade.
Enquanto
que Túlio abrigou rotas de fuga dentro de si. Começou a ter sonhos constantes.
E seus sonhos começaram a se materializar. Certo dia, ele acordou contando que
sonhara com um pássaro quebrando a vidraça da cozinha. Foi somente fechar a
boca e o pássaro colidiu contra a janela dando um baita susto em todos. Aquilo
era tudo muito estranho e o eco da perda ainda ressoava na vida dos trigêmeos.
Porém,
Kevin estava determinado a estabelecer a vida novamente. Ele sabia que tinha
que levantar seus dois irmãos daquela situação depressiva. E a forma mais
lógica que lhe veio à mente era comemorando novamente a passagem do ano. Ele
queria superar a dor e viver com uma nova perspectiva do futuro.
No
dia 31 de dezembro Kevin acordou cedo. Era cinco da manhã quando ele puxou a
cadeira da cozinha e sentou-se no quintal. Com uma xícara de café nas mãos,
sentou-se ereto e fechou os olhos. Inspirou e expirou pausadamente. Sentiu os
primeiros raios de sol afagarem sua face. Sentiu o cheiro da erva verde e do
eucalipto. Uma brisa delicada soprou-lhe os cabelos causando-lhe arrepios.
Ainda
de olhos fechados, mergulhou dentro de si. Gostava de chocolate, iria fazer um
bolo de chocolate. Um peru explodiu diante dele lhe lembrando da ceia.
Precisava arrumar a casa, varrer o assoalho e lavar a louça. Uma emoção surgiu
diante dele. Uma onda de angústia quis tirar-lhe a paz, essa onda era agitada e
afirmava que ele não conseguiria. Mas Kevin não atentou para a onda e
lembrou-se do lago que ficava ao sul da sua casa. Um lago sereno e límpido que
lhe trazia paz. Sua mente sentou-se diante do lago e inspirou a quietude.
Kevin
estava ali. Sentado no quintal da casa. Não havia monstros de fato. Tudo estava
dentro. E ele ao abrir os olhos percebeu isso.
Seu
irmão Nicolau sentou-se ao seu lado.
-
Tá fazendo o quê aí parado?
-
Estou aqui!
-
Isso eu sei. Mas o que você tá fazendo parado? – insistiu Nicolau.
-
Percebendo!
-
Você tá estranho.
Kevin
deu uma pequena risada para o irmão.
-
E você está aonde? – perguntou Kevin.
-
Aqui!
-
Ótimo!
-
Hoje é dia de virada – disse Kevin, analisando a expressão do irmão.
-
Não gosto mais dessa data.
- É
só mais um dia como qualquer outro. O que muda é o que está dentro da mente –
Kevin disse apontando o indicador pra cabeça.
-
Ano passado estávamos em paz com o papai e a mamãe. E hoje? Não é só mais um
dia comum. Faz um ano exatamente que eles se foram.
-
Se passaram 365 dias desde aquela data. Quanto tempo é preciso pra sair daquele
dia?
-
Você não viu o que eu vi – disse Nicolau, esfregando o canto dos olhos.
-
Mas, eu senti tanto quanto você sentiu. Eu também estava lá Nicolau. Agora
estou aqui – disse Kevin, fechando os olhos novamente.
Ao
fechar os olhos uma nuvem escura apareceu diante dele. Kevin saiu de dentro da
nuvem e pairou acima dela. Ele flutuava como uma pena bailando no espaço. Seus
olhos contemplaram um caminhão se aproximando e como num flash ele viu o carro
dos seus pais em chamas. Aquelas chamas se tornavam em cobras flamejantes que
se aproximavam dele. As serpentes picavam o seu peito e o veneno ardia seu
coração. Mas, Kevin sabia o que fazer. Ele enfiou sua mão dentro do peito e
arrancou seu próprio coração. O órgão pulsava lentamente como se estivesse
morrendo aos poucos, e uma mancha negra se espalhava por todas as veias. Ele
sugou o veneno para cuspi-lo em seguida. E devolveu o coração ao lugar. Depois
disso não havia mais acidente. Seus pais estavam ali diante dele, lhe dando um
abraço apertado e sorrindo. Enfim sumiram com um brilho fulgurante.
-
Você não conseguiu sair de lá – disse Kevin.
-
Talvez eu nunca saia.
Enquanto
conversavam, Túlio sentou-se do outro lado de Kevin. Os três ficaram em
silêncio, ouvindo o canto dos pássaros.
-
Tive outro sonho – disse Túlio, quebrando o silêncio.
-
Com o que você sonhou? – perguntou Kevin.
-
Sonhei que nós estávamos sentados à mesa comendo a ceia, quando um tremor
chacoalhava tudo, e uma bola de gelo enorme, caia sobre a nossa casa afundando
tudo no chão. Todos nós morríamos na mesma hora. E, fazia muito frio na morte –
ele disse, abraçando as pernas.
-
Foi só mais um sonho. Nada disso aconteceu ou vai acontecer – Kevin disse para
acalmá-lo.
-
Mas, eu fiquei com muito frio. Como isso pode acontecer? – ele falou tremendo o
queixo de frio.
-
Isso é coisa da sua cabeça Túlio. Só relaxa – Kevin levantou-se e encarou os
irmãos – Hoje é um dia especial. Vamos saltar todos juntos?
-
Que é isso, saltar? – perguntou Nicolau.
-
Vamos além do que estamos vivendo. Mudar nosso status quo. Ou seja: vamos
mudar, reinventar. Já chega de ficar na bad chorando pela perda dos nossos
pais. Hoje é dia de superação.
-
E o que você planeja? – perguntou Túlio.
-
Vamos arrumar a casa, preparar a ceia, decorar tudo e convidar todo mundo pra
ceiar com a gente! – disse Kevin animado.
-
Não viaja! – rebateu Nicolau.
-
Bem! Se vocês não vão me ajudar, por favor não me atrapalhem.
Então,
Kevin fez o que planejara. Limpou tudo, fez a ceia e decorou a casa. Tudo estava
pronto.
No
fim do dia uma vizinha que fora convidada para a ceia bateu em sua porta. Kevin
atendeu animado, e disposto a mudar. A vizinha lhe deu um presente e disse que
retornava na hora do jantar. Ele ficou curioso e abriu o presente. Ao ver o que
tinha dentro seu rosto se iluminou.
Enquanto
Kevin corria para mostrar o que havia ganhado, Nicolau foi ao banheiro querendo
fugir do irmão. Tudo estava escuro lá dentro e ele não conseguia achar o interruptor.
Mas, quando seus dedos tocaram no botão, e a luz foi acesa, ele se assustou com
o que viu. Nas paredes várias fotos estavam pregadas. As imagens mostravam o
carro esmagado de seus pais. O fogo consumindo tudo. Seus irmãos chorando em
desespero. O caixão sendo levado pelos familiares. Os dias de insônia e
desespero que ele viveu depois disso. E, Nicolau simplesmente despencou no chão
do banheiro. Na queda, a chave caiu dentro do ralo.
Ele
começou a debater-se contra a porta, tentando sair dali. Sem conseguir olhar
para as paredes, ele arrancou o porta toalhas e martelava os ladrilhos
quebrando tudo. Conseguiu acertar a lâmpada ficando totalmente no escuro. Seus
berros eram ouvidos à distância.
Enquanto
isso, Túlio arrancou toda sua roupa do guarda-a-roupa e pôs se a vestir-se. Uma
calça, duas calças, três calças e quanto mais ele conseguisse vestir. Pôs uma
camisa, outro casaco, e mais outras camisetas por cima. Um gorro, um protetor
auricular e várias meias. Uma bota de couro e várias luvas. Ele se jogou
debaixo de várias cobertas tentando fugir do frio. Um frio que atingira sua
mente.
Kevin
correu para tentar destrancar a porta do banheiro, mas tudo foi inútil. Já era
noite, e os vizinhos iriam começar a chegar. Ele precisava deixar tudo em
ordem. Então, correu para pedir ajuda de Túlio, para encontrá-lo debaixo das
cobertas.
-
Que você tá fazendo cara? – perguntou Kevin, preocupado.
-
Estou com muito frio!
-
Estamos com vinte e nove graus celsius, e você tá enrolado desse jeito. Não tá
tão frio assim Túlio, isso é coisa da sua cabeça.
-
Tem uma bola de gelo vindo em nossa direção. Se eu estiver protegido talvez não
faça tanto frio assim.
-
Mas, isso não aconteceu meu irmão! Você precisa sair dai e me ajudar!
-
Eu não posso! O frio está vindo!
-
Eu sei que a morte do papai e da mam...
-
Não fala disso, por favor – disse Túlio interrompendo o irmão.
-
Nós precisamos encarar essa realidade.
-
Não quero ouvir. Por favor não fala – Túlio gritava, entrando em profunda
angústia.
-
Eles se foram e isso é a realidade. Nós estamos aqui e agora! Esse é o nosso presente
Túlio, você precisa entender.
-
Não!!! Por favor para. Estou debaixo da bola de gelo e está muito frio.
-
Não irmão! Você está aqui comigo! – Kevin dizia, enquanto arrancava toda a
roupa que cobria o irmão.
Em
gritos profundos de angústia Túlio ficou despido. Kevin arrancara toda sua
roupa e lhe levara até o seu banheiro, enchendo a banheira e empurrando o irmão
dentro.
Túlio
estava em choque. Kevin se aproximou do irmão.
-
Olha pra mim Túlio.
Kevin
segurou o rosto do irmão.
-
Isso é o que nós temos. Temos um ao outro. Eles se foram e a nossa realidade é
essa. Precisamos trabalhar, estudar, cuidar das coisas. Todos os dias
precisamos vencer um dia de cada vez. O agora é a única coisa que nos resta.
Estamos aqui e agora. Você me entende? Não dá pra viver de sonhos, de um futuro
sombrio e sem vida. Você precisa estar presente. Viver no agora, tá entendendo?
Túlio
balançava a cabeça concordando.
-
Eu só não queria aceitar que eles se foram. Queria sufocar essa realidade com
planos e projetos futuros. Não queria pensar nisso – confessou Túlio.
-
Você não é esse trauma! Você não é essa perda! Você não é essa ansiedade do
futuro. Você precisa sair disso e encontrar quem você é de fato. Mas, toda essa
dor, simplesmente não te define.
-
Eu vou ficar bem. Se você me ajudar eu sei que vou ficar lúcido.
-
Estou aqui irmão. Conta comigo – disse Kevin dando um abraço apertado em Túlio.
Enquanto
Túlio se recompunha, Kevin desceu até o banheiro social e tentou falar com
Nicolau, que ainda estava preso.
-
Irmão, tá tudo bem? – perguntou Kevin.
-
Eu não consigo respirar Kevin. Tá tudo escuro aqui dentro. Tem fotos do
acidente aqui cara. Por que você fez isso? – disse Nicolau, ofegante.
-
Eu não fiz nada irmão. Você só precisa relaxar e respirar ok!
-
Eu não consigo, eu não consigo Kevin!
-
Tá! Só para de falar e me escuta tá?!
-
Tá!
-
Deita no chão.
-
Tá! Deitei! – disse Nicolau.
-
Imagina que você está deitado em uma nuvem. Ela é fofa e refrigera todo o teu
corpo. Daí, essa nuvem começa a te envolver e seu corpo inteiro vai se
misturando à nuvem. Enquanto você vai se transformando na nuvem, o ar entra
lentamente pelo seu nariz. Ele para um pouco dentro do seu peito, e vai saindo
lentamente da mesma forma como entrou. Mas, esse ar fica pairando sobre sua
cabeça por alguns segundos, para de novo entrar no seu pulmão bem devagar e
parar mais alguns segundos lá.
Kevin
parou e ficou escutando através da porta.
-
E aí, como se sente?
-
Tô mais calmo – Nicolau respondeu.
-
Ok, continua respirando assim tá!
-
Como faço pra sair daqui?
-
Irmãozão, você tá preso nisso tudo. Não consegue sair dessa situação, desses
flashes do passado. Tá na hora de se libertar.
-
Eu sei! Só não consigo.
-
Tá me ouvindo?
-
Tô!
-
Essa é a minha voz. A minha voz agora! E você consegue ouvir não é?
-
Sim!
-
Então, porque eu estou aqui, você também está!
-
Sim, eu sei que estou aqui! – respondeu Nicolau.
-
Mas a sua mente está no passado. Você precisa entender que a resposta e a
solução já estão aqui. Está com você!
-
Não entendi.
-
Só você pode sair daí, Nicos!
-
A chave caiu pelo ralo.
-
Você escondeu uma chave ai dentro lembra? Você me disse isso!
-
É verdade!
-
Então, você só precisa encontrar essa chave e sair dai irmão!
-
Tá, vou procurar.
Alguns
segundo de silêncio e a porta é destrancada por dentro. Nicolaus abraça seu
irmão.
-
Me perdoa por tudo. Eu estava iludido vivendo no passado e preso a essas
lembranças.
-
Você não precisa me pedir perdão. É hora de viver o presente! Vamos?!
Os
três sentaram à mesa e cearam com os vizinhos convidados. Juntos celebraram
mais um ano, mais um dia que se havia levantado.
Dessa
forma, recomeçaram a viver no presente. No fim das contas Kevin mostrou o
presente que ganhara da vizinha para os seus irmãos. Eles ficaram impactados
quando abriram a caixa e notaram seus reflexos em um espelho no interior.
Entenderam
que para viver basta estar no presente, sarando as feridas do passado e tirando
lições das experiências. E, planejando o futuro dando um passo após o outro
dentro do presente.
Assim,
31 de dezembro tornou-se um símbolo de consciência. Uma data de voltar-se para
si e se enxergar no presente. Afinal de contas o único momento que realmente
temos é o agora.
FIM